Uma das grandes dificuldades de ser um leigo católico comprometido com a própria fé está, sem dúvida, no exercício de uma função profissional. De fato, a todo momento, pelo simples fato de agir em conformidade com a fé já leva a diversas acusações de “intolerância” e de “violação do estado laico”. Na verdade, não são poucas as vezes em que um leigo católico é apontado como 'hipócrita” por declarar-se “cristão” e, ao mesmo tempo, parecer tão “intolerante” em conformar sua vida às modas contemporâneas. Note-se que não trato, aqui, da postura de quem acha que ser leigo católico é viver “evangelizando” no trabalho, ou “catequizando” aqueles que pensam ou creem diferente. Trato aqui de quem quer apenas viver sua vida coerentemente com o que propõe a fé católica.
Reclamar que um católico é contraditório ao ser intolerante com o erro (nunca com as pessoas), como fazem muitos hoje, deve nos lembrar que o conceito de "tolerância" como valor central da vida é originalmente iluminista e vem do filósofo inglês Locke; não da Bíblia nem da tradição cristã. Para o cristianismo, os valores centrais são a fé, a esperança e a caridade - especialmente esta última - fundamentados na Verdade.
Mas Locke escreveu sua "Letter concerning Tolerance" elevando a tolerância a valor central, e reduzindo a caridade ("agape", amor incondicional, em grego) a uma mera "filantropia" (amizade humanista, em grego) - excluídos do direito de ser tolerados, para Locke, apenas os católicos e os ateus. Desde então tem sido pregado “socialmente” que a tolerância é o valor central do cristianismo. Isto é falso: no centro do cristianismo está a caridade, que nos encaminha para a verdade.
Locke argumentava que o ateus não deveriam ser tolerados porque "Promises, covenants, and oaths, which are the bonds of human society, can have no hold upon an atheist' (promessas, alianças e juramentos, que são a liga das sociedades humanas, não vinculam os ateístas). Os Católicos Romanos tampouco deveriam ser tolerados, porque "all those who enter into it do thereby ipso facto deliver themselves up to the protection and service of another prince" (todos aqueles que aderem à Igreja Católica transferem-se ipso facto à proteção e ao serviço de outro príncipe).
Para Locke, o bom cristão não é o que defende "este ou aquele dogma", mas apenas o que crê em Jesus como um "mestre de moral" e devota sua lealdade mais elevada ao governante, sendo um bom cumpridor das leis.
Partindo dos pressupostos do "livre exame" e da "sola scriptura", Locke defende que qualquer um tem o direito de examinar a Bíblia, ressaltar o que quiser, desprezar o que quiser e se dizer cristão com justa razão, sentindo-se ofendido quando não é reconhecido como tal por não concordar com a leitura que outrem faz. Deve ser tolerado, diz Locke, uma vez que não é ateu, mas sob a condição de que não seja católico. Locke pede apenas do bom cristão que cumpra as leis civis, creia em Deus e jure sua lealdade primordial ao Estado.
No entanto, quando se lê o capítulo 4 do evangelho de Lucas – e proponho aqui uma mera abordagem literária, não uma abordagem de fé - nota-se que o Diabo, ao tentar Jesus, usa, em Lc 4, 10-11, citações bíblicas para fazê-lo, e as usa com maestria. Ele cita especificamente o salmo 91, versículos 11 e 12. Jesus responde com Deuteronômio 6, 16. trata-se, pois, de um debate bíblico entre dois personagens que conhecem profundamente a Bíblia e que a sabem citar de cor.
Falar de Bíblia, citar a Bíblia e conhecer e respeitar Jesus como personagem histórico o Diabo, em seu retrato literário bíblico, o faz. O Diabo, segundo a Bíblia, tampouco é ateu (Ver a Carta de Tiago, 2, 19: Tu crês que há um só Deus? Fazes bem! Mas também os demônios creem isso, e estremecem de medo). Isto tudo, parece, não faz do Diabo um cristão. Mas certamente faz dele, para Locke, paradoxalmente, alguém mais tolerável que os católicos e os ateus.
Ocorre que nem o princípio da "sola scriptura" nem o do "livre exame", a despeito de Locke, são bíblicos... Não estão lá. A Bíblia não declara que a coluna da verdade são as Escrituras livremente interpretadas. Ela solenemente registra que é a Igreja (1Tim 3, 15). Declara ainda que "nenhuma profecia é de interpretação pessoal", em 2 Pedro 1, 20.
Eis porque a chave para o verdadeiro cristianismo encontra-se não em proclamar-se individualmente cristão por “reconhecer o valor moral” ou “histórico” da Bíblia ou de Jesus, ou por crer que "Deus" existe; mas em pertencer à Igreja. Ou, como diz o apóstolo Paulo de Tarso (Ef 4,4-5) proclamar "Um só Senhor, uma só fé, um só batismo", para edificar na história o "Corpo de Cristo", que é a Igreja (Col 1, 18). A Igreja não é uma "associação civil" dos que vagamente aceitam Jesus como salvador, nem um "clube de serviços". É o próprio Corpo Místico de Cristo.
Ser cristão verdadeiramente é pertencer à Igreja, corpo historicamente visível como Jesus nos foi historicamente visível, o que se determina por três critérios bíblicos:
1. Professar o mesmo credo (uma só fé).
2. Compartilhar dos mesmos sacramentos (um só batismo).
3. Submeter-se à mesma autoridade (um só Senhor).
Este é o desafio do cristão católico leigo hoje: manter esta coerência na própria vida, a despeito de quanto ela possa parecer “intolerante” ou “antiquada”. Mais do que servir nos altares ou colaborar nas pastorais (que são missões secundárias para o católico leigo, apesar do que pensam alguns sacerdotes) trata-se de testemunhar, no mundo do trabalho, da cultura, da família, do lazer, que a sua primeira lealdade é, nas palavras do próprio Locke, “colocar-se a serviço e sob a proteção de outro príncipe”. Isto é, Jesus Cristo, no Seu corpo místico que é a Igreja. Sendo, entretanto, os melhores cidadãos que qualquer Estado pode legitimamente esperar. Isto será cada vez mais difícil num mundo em que a única coisa intolerável para os governantes é que não se lhes dê a lealdade que, para nós católicos, é devida somente a Deus.