Espiritualidade

Espiritualidade (74)

Estimados irmãos e irmãs

Hoje gostaria de vos falar sobre a Beata Ângela de Foligno, uma grande mística medieval que viveu no século XIII. Geralmente, ficamos fascinados diante dos ápices da experiência de união com Deus que ela conseguiu alcançar, mas talvez sejam considerados demasiado pouco os primeiros passos, a sua conversão e o longo caminho que a levou desde o ponto de partida, o «grande medo do inferno», até à meta, que é a união total com a Trindade. A primeira parte da vida de Ângela não é certamente a de uma fervorosa discípula do Senhor. Tendo nascido por volta de 1248 numa família abastada, ela permaneceu órfã de pai e foi educada pela mãe de modo bastante superficial. Muito cedo, foi introduzida nos ambientes mundanos da cidade de Foligno, onde conheceu um homem com o qual casou aos vinte anos e do qual teve alguns filhos. Levava uma vida despreocupada, a ponto de se permitir desprezar os chamados «penitentes» — muito difundidos naquela época — ou seja, aqueles que para seguir Cristo vendiam os próprios bens e viviam na oração, no jejum, no serviço à Igreja e na caridade.

Alguns acontecimentos, como o violento tremor de terra de 1279, um furacão, a prolongada guerra contra Perúsia e as suas duras consequências incidem na vida de Ângela, que progressivamente adquire consciência dos próprios pecados, até chegar a um passo decisivo: invoca São Francisco, que lhe aparece em visão, para lhe pedir conselho em vista de uma boa Confissão geral que devia realizar: estamos no ano de 1285; Ângela confessa-se a um frade em São Feliciano. Três anos mais tarde, o caminho da conversão conhece mais uma mudança: a dissolução dos vínculos afectivos porque, em poucos meses, à morte da mãe seguem-se a do marido e de todos os seus filhos. Então, vende os seus bens e, em 1291, adere à Terceira Ordem de São Francisco. Falece em Foligno no dia 4 de Janeiro de 1309.

BeataangelafolignoO livro da Beata Ângela de Foligno, em que está contida a documentação a propósito da nossa Beata, narra esta conversão; indica os meios necessários para isto: a penitência, a humildade e as tribulações; e descreve as suas passagens, a sucessão das experiências de Ângela, que começaram em 1285. Recordando-as, depois de as ter vivido, ela procurou narrá-las através do Frade confessor, que as transcreveu procurando sucessivamente dispô-las em etapas, às quais chamou «passos ou mudanças», mas sem conhecer ordená-las plenamente (cf. Il Libro della beata Angela da Foligno, Cinisello Balsamo 1990, pág. 51). Isto porque a experiência de união para a Beata Ângela é um envolvimento total dos sentidos espirituais e corporais, e daquilo que ela «compreende» durante as suas êxtases só permanece, por assim dizer, uma «sombra» na sua mente. «Ouvi verdadeiramente estas palavras — confessa ela depois de um arrebatamento místico — mas aquilo que eu vi e compreendi, e que Ele [ou seja, Deus] me mostrou, não sei nem posso dizê-lo de qualquer modo; não obstante, revelaria de bom grado aquilo que entendi com as palavras que ouvi, mas foi um abismo absolutamente inefável». Ângela de Foligno apresenta a sua «vivência» mística, sem a elaborar com a mente, uma vez que são iluminações divinas que se comunicam à sua alma de maneira repentina e inesperada. O próprio Frade confessor tem dificuldade em descrever tais acontecimentos, «também por causa da sua grande e admirável discrição em relação aos dons divinos» (Ibid., pág. 194). À dificuldade que Ângela tem de descrever a sua experiência mística, acrescenta-se inclusive a dificuldade para os seus ouvintes de a compreender. Uma situação que indica claramente como o único e verdadeiro Mestre, Jesus, vive no coração de cada crente e deseja tomar posse total do mesmo. Assim ocorreu em Ângela, que escrevia a um dos seus filhos espirituais: «Meu filho, se tu visses o meu coração, serias absolutamente obrigado a fazer tudo quanto Deus deseja, porque o meu coração é o de Deus, e o coração de Deus é o meu». Ressoam aqui as palavras de São Paulo: «Já não sou eu que vivo; é Cristo que vive em mim» (Gl 2, 20).

Então, consideremos aqui unicamente alguns «passos» do rico caminho espiritual da nossa Beata. O primeiro, na realidade, é uma premissa: «Foi o conhecimento do pecado — como ela mesma esclarece — a seguir ao qual a alma teve um grande medo de ser condenada; neste passo, chorou amargamente» (Il Libro della beata Angela da Foligno, pág. 39). Este «medo» do inferno corresponde ao tipo de fé que Ângela tinha no momento da sua «conversão»; uma fé ainda pobre de caridade, ou seja, do amor de Deus. Arrependimento, medo do inferno e penitência abrem a Ângela a perspectiva do doloroso «caminho da cruz» que, do oitavo ao décimo quinto passo, a levará depois pelo «caminho do amor». O Frade confessor narra: «Então, a fiel disse-me: tive esta revelação divina: “Depois daquilo que foi escrito, manda escrever que quem quiser conservar a graça, não deve afastar os olhos da alma da Cruz, tanto na alegria como na tristeza que lhe concedo ou permito”» (Ibid., pág. 143). Mas nesta fase, Ângela ainda «não sente o amor»; ela afirma: «A alma sente vergonha e amargura, e ainda não experimenta o amor, mas sim a dor» (Ibid., pág. 39), e sente-se insatisfeita.

Ângela sente que deve dar algo a Deus para reparar os seus pecados, mas lentamente compreende que nada tem para lhe oferecer, aliás, que «não é nada» diante dele; entende que não será a sua vontade que lhe dará o amor de Deus, porque ela só pode dar-lhe o seu «nada», o «desamor». Como ela mesma dirá: apenas «o amor verdadeiro e puro, que vem de Deus, está na alma e faz com que ela reconheça os próprios defeitos e a bondade divina [...] Tal amor leva a alma a Cristo e ela compreende com segurança que não se pode verificar nem haver qualquer engano. A tal amor não se pode misturar algo deste mundo» (Ibid., págs. 124-125). Abrir-se única e totalmente ao amor de Deus, que tem a máxima expressão em Cristo: «Ó meu Deus — reza ela — tornai-me digna de conhecer o mistério excelso, que o vosso amor ardentíssimo e inefável realizou, juntamente com o amor pela Trindade, ou seja, o mistério altíssimo da vossa santíssima encarnação por nós [...] Ó amor incompreensível! Acima deste amor, que fez com que o meu Deus se tenha feito homem para me fazer Deus, não existe amor maior» (Ibid., pág. 295). Todavia, o coração de Ângela traz sempre as feridas do pecado; mesmo depois de uma Confissão bem feita, ela sentia-se perdoada mas ainda angustiada pelo pecado, livre mas condicionada pelo passado, absolvida mas carente de penitência. E inclusive o pensamento do inferno a acompanha, pois quanto mais a alma progredir pelo caminho da perfeição cristã, tanto mais ela se há-de convencer não só que é «indigna», mas que é merecedora do inferno.

E eis que, ao longo do seu caminho místico, Ângela compreende de modo profundo a realidade central: aquilo que a salvará da sua «indignidade» e do «merecimento do inferno» não será a sua «união com Deus», nem a sua posse da «verdade», mas sim Jesus crucificado, «a sua crucifixão por mim», o seu amor. No oitavo passo ela diz: «Contudo, eu ainda não entendia se era um bem maior a minha libertação dos pecados e do inferno, e a conversão à penitência, ou então a sua crucifixão por mim» (Ibid., pág. 41). Trata-se do equilíbrio instável entre amor e dor, que ela sentia em todo o seu difícil caminho rumo à perfeição. Precisamente por isso, contempla de preferência Cristo crucificado, porque em tal visão ela vê realizado o equilíbrio perfeito: na cruz está o homem-Deus, num supremo gesto de sofrimento que é um acto supremo de amor. Na terceira Instrução, a Beata insiste sobre esta contemplação, afirmando: «Quanto mais perfeita e puramente virmos, tanto mais perfeita a puramente amaremos [...] Por isso, quanto mais virmos Deus e o homem Jesus Cristo, tanto mais seremos transformados nele através do amor [...] Aquilo que eu disse do amor [...] digo-o também da dor: quanto mais a alma contempla a dor inefável de Deus e do homem Jesus Cristo, tanto mais sofre e é transformada em dor» (Ibid., págs. 190-191). Identificar-se, transformar-se no amor e nos sofrimentos de Cristo crucificado, identificar-se com Ele. A conversão de Ângela, que teve início com aquela Confissão de 1285, só alcançará o amadurecimento quando o perdão de Deus aparecer na sua alma como a dádiva gratuita de amor do Pai, nascente de amor: «Ninguém pode desculpar-se — afirma ela — porque todos podem amar a Deus, e Ele só pede à alma que o ame, uma vez que Ele a ama e é o seu amor» (Ibid., pág. 76).

No itinerário espiritual de Ângela, a passagem da conversão para a experiência mística, daquilo que se pode expressar para o que é inefável, tem lugar através do Crucificado. É o «Deus-homem apaixonado» que se torna o seu «mestre de perfeição». Toda a sua experiência mística consiste, portanto, em tender para uma «semelhança» perfeita com Ele, mediante purificações e transformações cada vez mais profundas e radicais. A este maravilhoso empreendimento, Ângela dedica-se inteirtamente, de alma e corpo, sem se poupar a penitências e tribulações, desde o início até ao fim, desejando morrer com todos os sofrimentos padecidos pelo Deus-homem crucificado, para ser transformada totalmente nele: «Ó filhos de Deus — ela recomendava — transformai-vos totalmente no Deus-homem apaixonado, que vos amou a ponto de se dignar morrer por vós com uma morte extremamente ignominiosa, total e inefavelmente dolorosa, de modo penosíssimo e amarguíssimo. E isto somente por amor a ti, ó homem!» (Ibid., pág. 247). Esta identificação significa também viver aquilo que Jesus viveu: pobreza, desprezo e dor, porque — como ela afirma — «através da pobreza temporal, a alma encontrará riquezas eternas; mediante o desprezo e a vergonha, ela alcançará a suma honra e uma glória excelsa; através de um pouco de penitência, feita com esforço e dor, possuirá com infinita docilidade e consolação o sumo Bem, Deus eterno» (Ibid., pág. 293).

Da conversão à união mística com Cristo crucificado, ao inefável. Um caminho elevadíssimo, cujo segredo é a oração constante: «Quanto mais rezares — afirma ela — tanto mais serás iluminado; quanto mais fores iluminado, tanto mais profunda e intensamente verás o sumo Bem, o Ser sumamente bom; quanto mais profunda e intensamente O vires, tanto mais O amarás; quanto mais O amares, tanto mais serás feliz; e quanto mais fores feliz, tanto mais compreenderás e serás capaz de o compreender. Em seguida, chegarás à plenitude da luz, porque entenderás que não podes compreender» (Ibid., pág. 184).

Estimados irmãos e irmãs, a vida da Beata Ângela começa com uma existência mundana, bastante distante de Deus. Mas depois, o encontro com a figura de São Francisco e, finalmente, o encontro com Cristo crucificado, desperta a alma para a presença de Deus, para o facto de que somente com Deus a existência se torna verdadeiramente vida porque se torna, na dor pelo pecado, amor e alegria. E assim nos fala a Beata Ângela. Hoje todos nós corremos o perigo de viver como se Deus não existisse: Ele parece tão distante da vida contemporânea. Mas Deus tem mil modos, para cada um o seu, de se fazer presente na alma, de mostrar que existe, que me conhece e me ama. E a Beata Ângela quer chamar a nossa atenção para estes sinais, com os quais o Senhor sensibiliza a nossa alma, atentos à presença de Deus, para aprendermos assim o caminho com Deus e rumo a Deus, na comunhão com Cristo crucificado. Oremos ao Senhor para que nos torne atentos aos sinais da sua presença, que nos ensine a viver realmente. Obrigado!

Sábado, 16 Outubro 2010 15:47

29º Domingo do Tempo Comum

Escrito por

Evangelho de domingo: o horário de Deus

 

Por Dom Jesús Sanz Montes, ofm

 

OVIEDO, sábado, 16 de outubro de 2010 – Publicamos o comentário ao Evangelho do próximo domingo, 17 de outubro, XXIX do Tempo Comum (Lc 18, 1-8), redigido por Dom Jesús Sanz Montes, ofm, arcebispo de Oviedo (Espanha).

* * *

O ensinamento de Jesus sobre a oração não era uma questão banal. Ele queria ensinar seus discípulos a orar de tal maneira que permanentemente pudessem estar falando com e escutando Quem está permanentemente disposto a acolher nossas palavras e nos dirigir as suas.

O Mestre lhes propõe uma parábola com dois personagens curiosos: um juiz e uma viúva. A pessoa mais desprotegida que demanda ajuda ao juiz menos indicado. Como se resolveria a demanda da pobre mulher perante a falta de misericórdia do injusto juiz?

Disse Jesus que aquele juiz de muita lei e pouco coração terminou por ceder à viúva e determinou fazer justiça perante o adversário desta. Mas não porque houvesse mudado no seu interior, simplesmente para proteger o seu exterior, quer dizer, por puro temor e para que o deixassem em paz. Aqui para o Senhor e diz aos discípulos: “escutai bem o que diz esse juiz iníquo!” Ao final fez justiça a uma pobre mulher que suplicava. Um homem que não foi capaz de fazer isso pela verdadeira razão: o serviço ao outro, o direito do outro, o amor ao outro, o fez por egoísmo, por amor a si mesmo... mas fez. E Deus, que fará? Como se comportará perante seus eleitos que dia e noite gritam a Ele e suplicam?

O cristão é aquele que precisamente aprende a viver a partir da inesgotável relação com seu Deus e Senhor, em um contínuo face a face perante seu bendito Rosto, com um constante saber-se visto pelos olhos do Outro. Esta Presença que é sempre companhia e jamais foge. Não tira dos cristãos a fadiga apaixonante do viver cada dia com suas luzes e sombras, mas permite vivê-lo de outro modo, a partir de outros Olhos que nos veem, a partir de outro Coração que nos ama e por nós palpita, e a partir de outra Vida que nos acolhe, presenteando-nos a felicidade.

A oração, como certeza de uma companhia daquela que nos fala e olha, é uma educação para a vida: também nós, cristão, podemos sofrer todas as provações, mas nunca com tristeza e desesperança. A circunstância pode não mudar, mas o nosso modo de olhá-la e vivê-la sim, porque sabemos que Deus nos acompanha sem interrupção, em horário completo e sem declínio.

Fonte: Zenit

Queridos irmãos e irmãs:

santa_gertrudesSanta Gertrudes a Grande, sobre quem eu gostaria de vos falar hoje, leva-nos também ao mosteiro de Helfta esta semana; lá nasceram algumas das obras-primas da literatura religiosa feminina latino-germânica. A esse mundo pertence Gertrudes, uma das místicas mais famosas, única mulher da Alemanha que tem o apelativo de "a Grande", por sua estatura cultural e evangélica: com a sua vida e seu pensamento, ela incidiu de forma singular na espiritualidade cristã. É uma mulher excepcional, dotada de talentos naturais particulares e de extraordinários dons da graça, de profundíssima humildade e ardente zelo pela salvação do próximo, de íntima comunhão com Deus na contemplação e disponibilidade para socorrer os necessitados.

Em Helfta se compara, por assim dizer, sistematicamente com sua mestra, Matilde de Hackeborn, de quem falei na audiência da última quarta-feira; entra em relação com Matilde de Magdeburgo, outra mística medieval; e cresce sob o cuidado maternal, doce e exigente da abadessa Gertrudes. Destas três irmãs suas, adquire tesouros de experiência e sabedoria; e os elabora em uma síntese própria, percorrendo seu itinerário religioso com confiança ilimitada no Senhor. Expressa a riqueza da espiritualidade não somente em seu mundo monástico, mas também - e sobretudo - no mundo bíblico, litúrgico, patrístico e beneditino, com um selo personalíssimo e com grande eficácia comunicativa.

Ela nasceu em 6 de janeiro de 1256, festa da Epifania, mas não se sabe nada sobre seus pais nem sobre o lugar de nascimento. Gertrudes escreve que o próprio Senhor lhe revela o sentido desse primeiro desapego seu; afirma que o Senhor teria dito: "Eu a escolhi como minha morada e me alegro porque tudo que há de belo nela é obra minha (...). Precisamente por esta razão, afastei-a de todos os seus parentes, para que ninguém a amasse por motivo de consanguinidade e eu fosse a única razão do afeto que a move" (As revelações, I, 16, Sena, 1994, p. 76-77).

Aos 5 anos, em 1261, entrou no mosteiro, como era costume naquela época, para a formação e o estudo. Lá transcorreu toda a sua existência, da qual ela mesma indica as etapas mais significativas. Em suas memórias, recorda que o Senhor a preservou com paciência generosa e infinita misericórdia, esquecendo dos anos de sua infância, adolescência e juventude, transcorridos - escreve - "em tal cegueira de mente, que eu teria sido capaz (...) de pensar, dizer ou fazer, sem nenhum remorso, o que me desse vontade, aonde quer que fosse, se Tu não tivesses me preservado, seja com um horror inerente pelo mal e uma natural inclinação ao bem, seja com a vigilância externa dos demais. Eu teria me comportado como uma pagã (...) e isso mesmo Tu querendo que, desde a infância, desde o meu quinto ano de idade, eu habitasse no santuário abençoado da religião, para ser educada entre os teus amigos mais devotos" (Ibid., II, 23 140s).

Gertrudes foi uma estudante extraordinária, aprendeu tudo o que podia aprender das ciências do Trívio e do Quadrívio; era fascinada pelo saber e se dedicou ao estudo profano com ardor e tenacidade, conseguindo êxitos escolares muito além de toda expectativa. Se não sabemos nada sobre suas origens, ela contou muito sobre suas paixões juvenis: a literatura, a música, o canto e a arte da miniatura a cativaram. Tinha um caráter forte, decidido, imediato, impulsivo; frequentemente afirmava que era negligente; reconheceu seus defeitos, pediu humildemente perdão por eles. Com humildade, pediu conselhos e orações por sua conversão. Há características do seu temperamento e defeitos que a acompanharão até o final, até o ponto de assustar algumas pessoas, que se perguntam como é possível que o Senhor a prefira tanto.

De estudante, passou a consagrar-se totalmente a Deus na vida monástica e, durante 20 anos, não aconteceu nada de extraordinário: o estudo e a oração foram sua principal atividade. Devido aos seus dons, ela se sobressaía entre suas irmãs; era tenaz em consolidar sua cultura em campos diversos. Mas, durante o Advento de 1280, começou a sentir desgosto por tudo aquilo, percebeu sua vaidade e, em 27 de janeiro de 1281, poucos dias antes da festa da Purificação de Maria, na hora das Completas, o Senhor iluminou suas densas trevas. Com suavidade e doçura, acalmou a turbação que a angustiava, turbação que Gertrudes via como um dom de Deus "para abater essa torre de vaidade e de curiosidade que - ai de mim - ainda carregando o nome e o hábito de religiosa, fui elevando com a minha soberba, e pelo menos assim, encontrar o caminho para mostrar-me tua salvação" (Ibid., II,1, p. 87).

Ela teve a visão de um jovem que a guiava para superar o emaranhado de espinhos que oprimia sua alma, estendendo-lhe a mão. Nessa mão, Gertrudes reconheceu "a preciosa marca dessas chagas que ab-rogaram todas as atas de acusação dos nossos inimigos" (Ibid., II,1, p. 89); reconheceu Aquele que sobre a cruz nos salvou com seu sangue, Jesus.

Desde aquele momento, sua vida de comunhão com o Senhor se intensificou, sobretudo nos tempos litúrgicos mais significativos - Advento, Natal, Quaresma, Páscoa, festas de Nossa Senhora - ainda quando, doente, não podia se dirigir ao coro. É o mesmo húmus litúrgico de Matilde, sua mestra, que Gertrudes, no entanto, descreve com imagens, símbolos e termos mais simples e lineares, mais realistas, com referências mais diretas à Bíblia, aos Padres, ao mundo beneditino.

Sua biógrafa indica duas direções do que poderíamos chamar de particular "conversão" sua: nos estudos, com a passagem radical dos estudos humanistas profanos aos teológicos, e na observância monástica, com a passagem da vida que ela define como negligente à vida de oração intensa, mística, com um excepcional ardor missionário. O Senhor, que a havia escolhido desde o seio materno e que desde pequena lhe fizera participar do banquete da vida monástica, volta a chamá-la, com sua graça, "das coisas externas à vida interior; e das ocupações terrenas ao amor pelas coisas espirituais". Gertrudes compreende que esteve longe d'Ele, na região da dissimilitude, como diz Santo Agostinho: de ter-se dedicado com muita avidez aos estudos liberais, à sabedoria humana, descuidando a ciência espiritual, privando-se do gosto pela verdadeira sabedoria, agora é conduzida ao monte da contemplação, onde deixa o homem velho para revestir-se do novo. "De gramática, converte-se em teóloga, com a leitura incansável dos livros sagrados que podia ter ou obter e enchia seu coração com as mais úteis e doces sentenças da Sagrada Escritura. Tinha, por isso, sempre pronta uma palavra inspirada e de edificação para satisfazer os que iam consultá-la e, ao mesmo tempo, os textos escriturísticos mais adequados para rebater qualquer opinião errônea e fazer calar seus oponentes" (Ibid., I,1, p. 25).

Gertrudes transforma tudo isso em apostolado: dedica-se a escrever e divulgar as verdades da fé com clareza e simplicidade, graça e persuasão, servindo com amor e fidelidade a Igreja, até o ponto de ser útil e bem-vinda para os teólogos e pessoas piedosas. Desta intensa atividade sua, resta-nos pouco, também devido às circunstâncias que levaram à destruição do mosteiro de Helfta. Além do "Arauto do amor divino" e "As revelações", temos os "Exercícios Espirituais", uma joia rara da literatura mística espiritual.

Na observância religiosa, nossa santa é "uma coluna firme (...), firmíssima propugnadora da justiça e da verdade", diz sua biógrafa (Ibid., I, 1, p. 26). Com as palavras e o exemplo, suscitava nos demais grande fervor. Às orações e às penitências da regra monástica, acrescentava outras com tal devoção e abandono confiado em Deus, que provocava, em quem a encontrava, a consciência de estar na presença do Senhor. E, de fato, o próprio Deus lhe dá a entender que a chamou para ser instrumento da sua graça. Deste imenso tesouro divino, Gertrudes se sentia indigna, confessou não tê-lo protegido e valorizado. Exclamou: "Ai de mim! Se Tu tivesses me dado para lembrança tua, indigna como sou, inclusive um só fio de estopa, ele deveria ser guardado com maior respeito e reverência do que eu tive por estes teus dons!" (Ibid., II,5, p. 100). Mas, reconhecendo sua pobreza e indignidade, ela adere à vontade de Deus, "porque - afirma - aproveitei tão pouco suas graças, que não posso decidir acreditar que foram concedidas somente para mim, não podendo tua eterna sabedoria ser frustrada por alguém. Faze, portanto, ó Dador de todo bem, Tu que me concedeste gratuitamente dons tão imerecidos, que, lendo este escrito, o coração de pelo menos um dos teus amigos se comova pelo pensamento de que o zelo pelas almas te levou a deixar durante tanto tempo uma joia de valor tão inestimável em meio ao lodo abominável do meu coração" (Ibid., II,5, p. 100s).

Em particular, dois favores lhe foram mais queridos que qualquer outro, como escreveu a própria Gertrudes: "Os estigmas das tuas chagas, que imprimiste em mim como joias preciosas no coração, e a profunda e saudável ferida de amor com que o marcaste. Tu me inundaste com estes dons teus de tanta alegria que, ainda que eu tivesse de viver mil anos sem nenhum consolo, nem interior nem exterior, sua lembrança bastaria para reconfortar-me, iluminar-me, encher-me de gratidão. Quiseste também introduzir-me na inestimável intimidade da tua amizade, abrindo-me de muitas formas esse sacrário nobilíssimo da tua divindade, que é o teu Coração divino (...). A esse cúmulo de benefícios, acrescentaste o de dar-me por advogada a Santíssima Virgem Maria, tua Mãe, e de ter me recomendado frequentemente seu afeto como o mais fiel dos esposos poderia recomendar à sua própria mãe sua esposa querida" (Ibid., II, 23, p. 145).

Dirigida à comunhão sem fim, concluiu sua vida terrena no dia 17 de novembro de 1301 ou 1302, aos quase 46 anos. No sétimo Exercício, o da preparação para a morte, Santa Gertrudes escreveu: "Ó Jesus, Tu que me és imensamente querido, fica sempre comigo, para que o meu coração permaneça contigo e teu amor persevere comigo sem possibilidade de divisão, e meu trânsito seja abençoado por Ti, de maneira que meu espírito, livre dos laços da carne, possa imediatamente encontrar repouso em Ti. Amém." (Esercizi, Milão, 2006, p. 148).

Parece-me óbvio que estas não são somente coisas do passado, históricas, mas que a existência de Santa Gertrudes continua sendo uma escola de vida cristã, de reto caminho, que nos mostra que o centro de uma vida feliz, de uma vida verdadeira, é a amizade com Jesus, o Senhor. E essa amizade se aprende no amor pela Sagrada Escritura, no amor pela liturgia, na fé profunda, no amor a Maria, de forma que se conheça cada vez mais realmente o próprio Deus e, assim, a verdadeira felicidade, a meta da nossa vida.

Obrigado.

[Tradução: Aline Banchieri.

©Libreria Editrice Vaticana]

Fonte: Zenit

Segunda, 11 Outubro 2010 10:17

Os dez leprosos, a gratidão do samaritano

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Juiz de Fora, 10 outubro - No Evangelho de domingo, Lc 17, 11-19, o ponto alto da narrativa é a fé do samaritano. O samaritano tem uma fé madura, que nasce da esperança, cresce na obediência à Palavra de Jesus e se manifesta na gratidão. Com isso, ele não só recebe a cura, mas é salvo. Sua vida chega à plenitude, ao reconhecer que, em Jesus, o amor de Deus leva os homens a viver na alegria da gratidão. A vida que Deus dá em Jesus Cristo é gratuita, é graça.
No tempo de Jesus, havia rivalidades entre os habitantes da Samaria (samaritanos) e os judeus. Estes desprezavam aqueles acirradamente. Esse ressentimento era infundado e Jesus quer mostrar que pessoas de bem não são, necessariamente, apenas os judeus. Aqueles de quem não gostamos ou que desprezamos, pode, de repente, ser melhor do que nós.
Há várias parábolas em que Jesus coloca o samaritano como aquele que age melhor, que está mais perto de Deus. Somos todos irmãos e precisamos agradecer a Deus, a cada manhã, pela oportunidade de mais um dia de vida.
Jesus não quer que desprezemos as pessoas, mas que entendamos que aquele que desprezamos pode nos dar uma lição de vida muito mais bonita do que a que levamos.
Os dez leprosos viram-se "curados" da sua doença, mas só um foi "salvo": aquele que, movido pela sua fé, deu glória a Deus e agradeceu a Jesus. São Lucas põe em relevo o fato de o leproso salvo ser um estrangeiro. Como estrangeiro era também Naamã, comandante do exército dos Arameus mas ferido de lepra. Naamã ficou curado quando, obedecendo à palavra do profeta Eliseu, foi lavar-se nas águas do rio Jordão. A Palavra de Deus põe em evidência que "a salvação do Senhor é para todos os povos". O destino universal da salvação e a fidelidade a Israel, que à primeira vista podem parecer em contradição, são na realidade dois aspectos inseparáveis e recíprocos do mesmo mistério salvífico: é precisamente a intensidade e a solidez do amor de Deus pelo povo por Ele escolhido que torna este amor uma "bênção" para todos os povos (cf. Gn 12, 3). A manifestação mais alta disto mesmo está na cruz de Cristo, o máximo sinal da sua dedicação às ovelhas perdidas da Casa de Israel e, simultaneamente, da redenção da humanidade inteira.
São Paulo nos diz que, quando ele está fraco, aí é que se torna forte porque é na fraqueza que mais precisamos da graça e da força de Deus. E é então que a recebemos em toda a sua plenitude.
No cumprimento das leis e prescrições mosaicas, os leprosos que encontram Cristo param "à distância", sentem-se impuros, fora da convivência humana; quem os toca também ficará impuro. O Senhor cura-os e manifesta-lhes a sua vontade salvífica com as palavras e com dois sinais muito consistentes: estende as mãos e toca-os. Cristo não aceita somente aproximar-se aos leprosos mas estende a sua mão, recebe-os e toca-os. Cristo identifica-se com o leproso, torna-se completamente solidário com eles. Destrói a impureza e a marginalização deles, manifesta a sua plena solidariedade com eles.
A solidariedade coincide com a autêntica espiritualidade, ou seja: a ação do Espírito Santo, o amor. O Espírito Santo é o amor de Deus que se faz história na misericórdia solidária do Pai Eterno que nos envia o seu Filho redentor através da sua encarnação pascal. O Espírito Santo é a intercomunicação trinitária infinita no amor. A Terceira Pessoa da Santíssima Trindade mostra-nos a natureza divina de Deus como Amor; um amor que é a entrega total do Pai ao seu Filho e do Filho ao seu Pai que, na sua total dedicação, fazem proceder deles a pessoa Amor, a pessoa Dom, que é o Espírito Santo. Portanto, o Espírito Santo significa a infinita posse pessoal individual tanto do Pai como do Filho em si próprios, posse que o coloca em condição de se poder doar de modo absoluto. Aqui encontra-se a essência da solidariedade. Quando falamos da solidariedade humana, esta é autêntica somente quando é feita à imagem de Deus. O homem torna-se filho de Deus somente através da solidariedade, que significa receber numa doação gratuita plena tudo aquilo que é e doá-lo também sem medida a Deus e aos outros.
Somente sob esta luz se pode entender o mistério da solidariedade redentora: de fato, a maior doação que se possa pensar é a doação até à morte: "Ninguém tem mais amor do que quem dá a vida pelos seus amigos" (Jo 15, 13). Desta doação, até à morte, o Pai cria a solidariedade da humanidade redimida. Consequentemente, a autêntica solidariedade é aquela a que não importa o risco da perda da vida até ao ponto de poder dar a vida pelos outros.

+ Eurico dos Santos VelosoArcebispo Emérito de Juiz de Fora, MG.

Fonte: Rádio Vaticana

Quarta, 06 Outubro 2010 11:48

São Bruno

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Hoje lembramos o santo que se tornou o fundador da Ordem dos Cartuxos, considerada a mais rígida de todas as Ordens da Igreja, e que atravessou a história sem reformas.

saobrunoFilho de família nobre de Colônia (Alemanha), nasceu em 1032. Quando alcançou idade foi chamado pelo Senhor ao sacerdócio, e se deixou seduzir. Amigo e admirado pelo Arcebispo de Reims, Bruno, inteligente e piedoso, começou a dar aulas na escola da Catedral desse local, até que já, cinquentenário e cônego, amadureceu na inspiração de servir a uma Ordem religiosa.

Após curto estágio num mosteiro beneditino, retirou-se a uma região chamada Cartuxa com a aprovação e bênção de São Hugo, Bispo de Grenoble, o qual lhe ofereceu um lugar. Isto se deu graças a um sonho que São Hugo teve. Neste sonho, apareciam-lhe sete estrelas que caíam aos seus pés para, logo em seguida, levantarem-se e desaparecerem no deserto montanhoso. Após este sonho, o Bispo recebeu a visita de Bruno que estava acompanhado por seis companheiros monges. Ao ver os sete varões, o Bispo Hugo reconheceu imediatamente neles as sete estrelas do sonho e concedeu-lhes as terras onde São Bruno iniciou a Ordem gloriosa da Cartuxa com o coração abrasado de amor por Jesus e pelo Reino de Deus. Com os monges companheiros, observava-se absoluto silêncio, a fim do aprofundamento na oração e à meditação das coisas divinas, ofícios litúrgicos comunitários, obediência aos superiores, trabalhos agrícolas, transcrição de manuscritos e livros piedosos.

Quando um dos discípulos de São Bruno tornou-se Papa (Urbano II), teve ele que obedecer ao Vigário de Cristo, já que o queria como assessor, porém, recusou ser Bispo e após pedir com insistência ao Sumo Pontífice, conseguiu voltar à vida religiosa, quando juntamente com amigos de Roma, fundou no sul da Itália o Mosteiro de Santa Maria da Torre, onde veio a falecer no dia 6 de outubro de 1101.

As últimas palavras foram: "Eu creio nos Santos Sacramentos da Igreja Católica, em particular, creio que o pão e o vinho consagrados, na Santa Missa, são o Corpo e Sangue, verdadeiros, de Jesus Cristo".

Fonte: Canção Nova

Quarta, 06 Outubro 2010 11:38

São Bernardo de Claraval

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São Bernardo de Claraval

Queridos irmãos e irmãs!

Hoje gostaria de falar de São Bernardo de Claraval, chamado "o último dos Padres" da Igreja, porque no século XII, mais uma vez, renovou e tornou presente a grande teologia dos Padres. Não conhecemos os pormenores os anos da sua infância; sabemos contudo que ele nasceu em 1090 em Fontaines na França, numa família numerosa e discretamente abastada. Ainda jovem, prodigalizou-se no estudo das chamadas artes liberais – especialmente da gramática, da retórica e da dialéctica – na escola dos Cónegos da igreja de Saint-Vorles, em Châtillon-sur-Seine e amadureceu lentamente a decisão de entrar na vida religiosa. Por volta dos vinte anos entrou em Cîteaux, uma fundação monástica nova, mais activa em relação aos antigos e veneráveis mosteiros de então e, ao mesmo tempo, mais rigorosa na prática dos conselhos evangélicos. Alguns anos mais tarde, em 1115, Bernardo foi enviado por Santo Estêvão Harding, terceiro Abade de Cîteaux, para fundar o mosteiro de Claraval (Clairvaux). Aqui o jovem Abade, tinha apenas vinte e cinco anos, pôde apurar a própria concepção da vida monástica, e empenhar-se em pô-la em prática. Olhando para a disciplina de outros mosteiros, Bernardo recordou com decisão a necessidade de uma vida sóbria e comedida, tanto à mesa como no vestuário e nos edifícios monásticos, recomendando o sustento e a atenção aos pobres. Entretanto a comunidade de Claraval tornava-se cada vez mais numerosa, e multiplicava as suas fundações.

saobernardodeclaravalNestes mesmos anos, antes de 1130, Bernardo iniciou uma ampla correspondência com muitas pessoas, quer importantes quer de modestas condições sociais. Às muitas Cartas deste período é preciso acrescentar numerosos Sermões, assim como Sentenças e Tratados. Remonta sempre a este tempo a grande amizade de Bernardo com Guilherme, Abade de Saint-Thierry, e com Guilherme de Champeaux, figuras entre as mais importantes do século XII. A partir de 1130, começou a ocupar-se de muitas e graves questões da Santa Sé e da Igreja. Por este motivo teve que sair cada vez mais do seu mosteiro, e por vezes da França. Fundou também alguns mosteiros femininos, e foi protagonista de um vivaz epistolário com Pedro o Venerável, Abade de Cluny, sobre o qual falei na quarta-feira passada. Dirigiu sobretudo os seus escritos polémicos contra Abelardo, um grande pensador que iniciou um novo modo de fazer teologia, introduzindo sobretudo o método dialéctico-filosófico na construção do pensamento teológico. Outra frente contra a qual Bernardo lutou foi a heresia dos Cátaros, que menosprezavam a matéria e o corpo humano, desprezando, por conseguinte, o Criador. Ele, ao contrário, sentiu-se no dever de assumir a defesa dos judeus, condenando as manifestações de anti-semitismo cada vez mais difundidas. Devido a este aspecto da sua acção apostólica, algumas dezenas de anos mais tarde, Ephraim, rabino de Bonn, dirigiu a Bernardo uma vivaz homenagem. Naquele mesmo período o santo Abade escreveu as suas obras mais famosas, como os celebérrimos Sermões sobre o Cântico dos Cânticos. Nos últimos anos da sua vida – a sua morte verificou-se em 1153 – Bernardo teve que limitar as viagens, sem contudo as interromper totalmente. Aproveitou para rever definitivamente o conjunto das Cartas, dos Sermões e dos Tratados. Merece ser mencionado um livro bastante particular, que ele terminou precisamente neste período, em 1145, quando um seu aluno, Bernardo Pignatelli, foi eleito Papa com o nome de Eugénio III. Nesta circunstância, Bernardo, como Padre espiritual, escreveu a este seu filho espiritual o texto De Consideratione, que contém ensinamentos para poder ser um bom Papa. Neste livro, que permanece uma leitura conveniente para os Papas de todos os tempos, Bernardo não indica apenas como desempenhar bem o papel de Papa, mas expressa também uma visão profunda do mistério da Igreja e do mistério de Cristo, que no final se resolve na contemplação do mistério de Deus trino e uno:  "Deveria ainda prosseguir a busca deste Deus, que ainda não é bastante procurado", escreve o santo Abade "mas talvez se possa procurar melhor e encontrar mais facilmente com a oração do que com o debate. Ponhamos então aqui um ponto final no livro, mas não na pesquisa" (XIV, 32:  PL 182, 808), no estar a caminho rumo a Deus.

Gostaria de me deter agora só sobre dois aspectos centrais da rica doutrina de Bernardo:  eles referem-se a Jesus Cristo e a Maria santíssima, sua Mãe. A sua solicitude pela participação íntima e vital do cristão no amor de Deus em Jesus Cristo não contribui com novas orientações para o estatuto científico da teologia. Mas, de modo mais do que decidido, o Abade de Clairvaux configura o teólogo com o contemplativo e com o místico. Só Jesus – insiste Bernardo diante dos complexos raciocínios dialécticos do seu tempo – só Jesus é "mel para os lábios, cântico para os ouvidos, júbilo para o coração" (mel in ore, in aure melos, in corde iubilum)". Vem precisamente daqui o título, a ele atribuído pela tradição, de Doctor mellifluus:  de facto, o seu louvor de Jesus Cristo "escorre como o mel". Nas extenuantes batalhas entre nominalistas e realistas – duas correntes filosóficas da época – o Abade de Claraval não se cansa de repetir que um só nome conta, o de Jesus de Nazaré. "Todo o alimento da alma é árido", confessa, "se não for aspergido com este óleo; insípido, se não for temperado com este sal. Aquilo que escreves para mim não tem sabor, se nisso eu não ler Jesus". E conclui:  "Quando discutes ou falas, para mim nada tem sabor, se eu não ouvir ressoar nisso o nome de Jesus" (Sermones in Cantica Canticorum XV, 6:  PL 183, 847). De facto, para Bernardo o verdadeiro conhecimento de Deus consiste na experiência pessoal, profunda de Jesus Cristo e do seu amor. E isto, queridos irmãos e irmãs, é válido para cada cristão:  a fé é antes de tudo encontro pessoal, íntimo com Jesus, é fazer a experiência da sua proximidade, da sua amizade, do seu amor, e só assim se aprende a conhecê-lo cada vez mais, a amá-lo e a segui-lo sempre mais. Que isto se verifique com cada um de nós!

Noutro célebre Sermão no domingo entre a oitava da Assunção, o santo Abade descreve em termos apaixonados a íntima participação de Maria no sacrifício redentor do Filho. "Ó santa Mãe – exclama ele – deveras uma espada trespassou a tua alma!... A violência da dor trespassou de tal modo a tua alma, que justamente podemos chamar-te mais do que mártir, porque em ti a participação na paixão do Filho superou muito em intensidade os sofrimentos físicos do martírio" (14:  PL 183, 437-438). Bernardo não tem dúvidas:  "per Mariam ad Iesum", através de Maria somos conduzidos até Jesus. Ele testemunha com clareza a subordinação de Maria a Jesus, segundo os fundamentos da mariologia tradicional. Mas o corpo do Sermone documenta também o lugar privilegiado da Virgem na economia da salvação, após a particularíssima participação da Mãe (compassio) no sacrifício do Filho. Não por acaso, um século e meio depois da morte de Bernardo, Dante Alighieri, no último canto da Divina Comédia, colocará nos lábios do "Doutor melífluo" a sublime oração a Maria:  "Virgem Mãe, filha do teu Filho, / humilde e nobre mais do que qualquer criatura, / termo fixo do eterno conselho,..." (Paraíso 33, vv. 1 ss.).

Estas reflexões, características de um apaixonado por Jesus e Maria como São Bernardo, provocam ainda hoje de modo saudável não só os teólogos, mas todos os crentes. Por vezes pretende-se resolver as questões fundamentais sobre Deus, sobre o homem e sobre o mundo unicamente com as forças da razão. São Bernardo, ao contrário, solidamente fundado na Bíblia e nos Padres da Igreja, recorda-nos que sem uma fé profunda em Deus, alimentada pela oração e pela contemplação, por uma relação íntima com o Senhor, as nossas reflexões sobre os mistérios divinos correm o risco de se tornarem uma vã prática intelectual, e perdem a sua credibilidade. A teologia remete para a "ciência dos santos", para a sua intuição dos mistérios do Deus vivo, para a sua sabedoria, dom do Espírito Santo, que se tornam ponto de referência do pensamento teológico. Juntamente com Bernardo de Claraval, também nós devemos reconhecer que o homem procura melhor e encontra mais facilmente Deus "com a oração do que com o debate". No final, a figura mais verdadeira do teólogo e de cada evangelizador permanece a do Apóstolo João, que apoiou a sua cabeça no coração do Mestre.

Gostaria de concluir estas reflexões sobre São Bernardo com as invocações a Maria, que lemos numa sua bonita homilia. "Nos perigos, nas angústias, nas incertezas – diz ele – pensa em Maria, invoca Maria. Que ela nunca abandone os teus lábios, nem o teu coração; e para obteres a ajuda da sua oração, nunca esqueças o exemplo da sua vida. Se a segues, não te podes desviar; se lhe rezas, não te podes desesperar; se pensas nela não podes errar. Se ela te ampara, não cais; se ela te protege, nada temes; se ela te guia, não te cansas; se ela te é propícia, alcançarás a meta..." (Hom. II super "Missus est", 17:  PL 183, 70-71).

Audiência de 21 de outubro de 2009.

Fonte: www.vatican.va

Segunda, 04 Outubro 2010 21:15

Chiara Luce Badano: jovem, moderna e santa

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chiaraluceNo dia 25 de setembro, em Roma, aconteceu a beatificação de Chiara Luce Badano, uma jovem italiana que morreu há 20 anos, no dia 7 de outubro de 1990. Filha única de um casal que a esperou durante 11 anos, nasceu em Sassello, norte da Itália, no dia 29 de outubro de 1971. Com nove anos, entrou em contato com o Movimento dos Focolares, ao participar, juntamente com seus pais, de um encontro de espiritualidade em Roma, fato que modificou radicalmente a vida dos três membros da pequena família.

Voltou para casa renovada e irradiante. Uma intensa luz interior, que se transformou numa profunda alegria, a fez entender que Deus a amava acima de qualquer expectativa. Suas fraquezas e incoerências, que até então a humilhavam e pareciam impedir sua intimidade com ele, passaram a ser vistas como um poderoso imã, que atraía a misericórdia divina. Sentindo-se amada gratuitamente – independentemente de seus méritos reais ou fictícios – passou a gozar de uma liberdade jamais antes imaginada, que a impelia a amar a todos. Como São João, ela não cansava de repetir: «Conheço o amor que Deus tem por mim e nele acredito!» (1Jo 4,16).

Contudo, para ser fiel ao ideal que abraçara, diferentemente de sua homônima, Santa Clara de Assis, ela não se retirou para um convento nem abandonou a família e os numerosos amigos que sua simpatia cativava. Nem começou a passar longas horas na igreja... Pelo contrário, o seu novo estilo de vida reforçou mais ainda a graça que brilhava em todo o seu agir. Para ela, santidade era fazer a vontade de Deus. E a vontade de Deus é uma só: amar! Por isso, dedicava-se com intensidade e desapego tanto aos estudos e aos pequenos trabalhos domésticos, como aos esportes, à dança, ao canto e aos encontros de formação com os colegas que a cercavam.

Em suma, uma jovem cheia de vida, de alegria e... de projetos para o futuro, não excluído o casamento. Contudo, em 1988, quando mal completara 17 anos, durante uma partida de tênis, sentiu uma aguda dor nas costas. Os exames médicos lhe deram a pior de todas as notícias: câncer nos ossos.

Foi um baque que a jogou nas trevas mais espessas. As dúvidas e as interrogações se sucederam num ritmo crescente: «Por que isso acontece justamente comigo, que tanto luto para fazer o bem a todos? Por que Deus, que é amor, permite uma coisa dessas? Mas, se ele é todo-poderoso, por que não faz um milagre?» Pediu à mãe que a deixasse sozinha em seu quarto por quinze minutos. Em seguida, abriu a porta e, com o rosto brilhando entre as lágrimas, exclamou: «Por ti, Jesus! Se tu o queres, eu também o quero!».

As dores e provas passaram a se suceder num ritmo crescente. Mas, diante de cada uma delas, repetia o seu “sim” “sempre, logo e com alegria” – como aprendera de sua mestra, Chiara Lubich. Foi tão grande o progresso alcançado nos dois anos de doença, que disse a uma amiga: «Se tivesse de escolher entre caminhar novamente ou ir ao Paraíso, eu não teria dúvida: escolheria o Paraíso. Nessa altura, somente ele me interessa».

No dia 19 de julho de 1990, ela escrevia a Chiara Lubich: «A medicina não tem mais nada a fazer. Ao interromper o tratamento, as dores na coluna aumentaram muito. Quase não consigo me mexer. Sinto-me tão pequena, e o caminho que devo percorrer, tão duro... Frequentemente tenho a impressão de ser sufocada pela dor. É Jesus, o Esposo, que vem ao meu encontro, não é mesmo? Sim, eu repito com você: “Se tu queres, eu também quero!”. Com você e com ele, tenho certeza que conquistaremos o mundo!».

De Chiara Lubich, Chiara Badano recebeu o sobrenome de “Luce”, pela luz que irradiava o seu ser e contagiava os que dela se aproximavam. Passou os últimos dias de vida preparando o que julgava necessário para o funeral, que denominou “festa de seu casamento”: os cânticos, as flores e o vestido branco. As últimas palavras que dirigiu à mãe revelam a maturidade alcançada por uma jovem que acreditou no amor: «Seja feliz, assim como eu o sou!».

Dom Redovino Rizzardo

Fonte: CNBB

Santa Matilde de Hackeborn

Queridos irmãos e irmãs,

Santa Matilde de Hackeborn foi uma das grandes figuras do monaquismo alemão no século XIII. Desde criança sentiu-se chamada à vida religiosa, vindo a fazer parte da comunidade do mosteiro de Helfa, no período mais glorioso da sua história, onde se oferecia uma sólida formação intelectual e espiritual fundada na Sagrada Escritura, na Liturgia, na Tradição Patrística e na regra cisterciense. As elevadas qualidades naturais e espirituais de que era dotada, associadas ao dom divino da contemplação mística, faziam que muitas pessoas, às vezes vindas de longe, a procurassem para encontrar o consolo dos seus sábios conselhos. De fato, ao deixar-se guiar pela Sagrada Escritura e nutrindo-se pelo Pão eucarístico, Matilde percorreu um caminho de íntima união com o Senhor, entrando em diálogo com o seu dulcíssimo e ardente Coração, fonte de luzes interiores e ocasião de intercessão pelas suas irmãs. Pouco após a sua morte, a sua obra e a sua fama de santidade já tinham se difundido grandemente.

Audiência de 29 de setembro de 2010.

Fonte: www.vatican.va

Santa Hildegarda de Bingen

Amados irmãos e irmãs!

Em 1988, por ocasião do Ano Mariano, o Venerável João Paulo II escreveu uma Carta Apostólica intitulada Mulieris dignitatem, sobre o papel precioso que as mulheres desempenharam e desempenham na vida da Igreja. «A Igreja — lê-se nela — agradece todas as manifestações do génio feminino surgidas no curso da história, no meio de todos os povos e nações; agradece a variedade dos carismas que o Espírito Santo concede às mulheres na história do Povo de Deus, todas as vitórias que ela deve à sua fé, esperança e caridade das mesmas: agradece todos os frutos de santidade feminina» (n. 31).

Também naqueles séculos da história que nós habitualmente chamamos Idade Média, sobressaem diversas figuras femininas pela santidade e riqueza do ensinamento. Hoje gostaria de iniciar apresentando-vos uma delas: Santa Hildegarda de Bingen, que viveu na Alemanha no século XII. Nasceu em 1098 na Renánia, em Bermersheim, perto de Alzey, e faleceu em 1179, com 81 anos de idade, não obstante a permanente fragilidade da sua saúde. Hildegarda pertencia a uma família nobre e numerosa e, desde o nascimento, foi destinada pelos seus pais para o serviço de Deus. Com oito anos, para que recebesse uma adequada formação humana e cristã, foi confiada aos cuidados da mestra Judite de Spanheim, que se tinha retirado em clausura no mosteiro beneditino de São Disibodo. Foi-se formando um pequeno mosteiro feminino de clausura, que seguia a Regra de São Bento. Hildegarda recebeu o véu do Bispo Otão de Bamberg e, em 1136, com a morte da madre Judite, que era Superiora da comunidade, as irmãs de hábito chamaram-na para lhe suceder. Desempenhou esta tarefa fazendo frutificar os seus dotes de mulher culta, espiritualmente elevada e capaz de enfrentar com competência os aspectos organizativos da vida claustral. Alguns anos mais tarde, também devido ao número crescente de jovens mulheres que batiam à porta do mosteiro, Hildegarda fundou outra comunidade em Bingen, intitulada a São Ruperto, onde transcorreu o resto da vida. O estilo com que exercia o ministério da autoridade é exemplar para cada comunidade religiosa: suscitava uma santa emulação na prática do bem, a ponto que, como resulta do testemunho do tempo, a madre e as filhas competiam na estima e no serviço recíprocos.

Já nos anos em que era superiora do mosteiro de São Disibodo, Hildegarda iniciara a ditar as visões místicas, que tinha há tempos, ao seu conselheiro espiritual, o monge Volmar, e à sua secretária, uma irmã de hábito à qual era muito afeiçoada, Richardis de Strade. Como acontece sempre na vida dos verdadeiros místicos, também Hildegarda quis submeter-se à autoridade de pessoas sábias para discernir a origem das suas visões, temendo que elas fossem fruto de ilusões e que não proviessem de Deus. Por isso dirigiu-se à pessoa que na sua época gozava da máxima estima na Igreja: São Bernardo de Claraval, do qual já falei nalgumas catequeses. Ele tranquilizou e encorajou Hildegarda. Mas em 1147 ela recebeu outra aprovação importantíssima. O Papa Eugénio III, que presidia um Sínodo em Trier, leu um texto ditado por Hildegarda, que lhe foi apresentado pelo Arcebispo Henrique de Mainz. O Papa autorizou a mística a escrever as suas visões e a falar em público. A partir daquele momento o prestígio espiritual de Hildegarda cresceu cada vez mais, a ponto que os contemporâneos lhe atribuíram o título de «profetiza teutónica». Eis, queridos amigos, o selo de uma experiência autêntica do Espírito Santo, fonte de todo o carisma: a pessoa depositária de dons sobrenaturais nunca se vangloria disso, não os exibe mas, sobretudo, mostra total obediência à autoridade eclesial. Cada dom distribuído pelo Espírito Santo, de facto, é destinado à edificação da Igreja, e a Igreja, através dos seus Pastores, reconhece a sua autenticidade.

Voltarei a falar na próxima quarta-feira sobre esta grande mulher «professa», que fala com grande actualidade também hoje a nós, com o seu amor pela criação, o seu remédio, a sua poesia, a sua música, que hoje é reconstruída, o seu amor a Cristo e à Sua Igreja, que sofria também naquela época, ferida como hoje pelos pecados dos sacerdotes e dos leigos, e muito mais amada como corpo de Cristo. Assim Santa Hildegarda fala a nós; voltaremos a este tema na próxima quarta-feira. Obrigado pela vossa atenção.

Audiência de 01 de setembro de 2010.

Fonte: www.vatican.va

Santa Hildegarda de Bingen (2)

Queridos irmãos e irmãs!

Hoje gostaria de retomar e continuar a reflexão sobre Santa Hildegarda de Bingen, figura feminina importante da Idade Média, que se distinguiu pela sabedoria espiritual e pela santidade de vida. As visões místicas de Hildegarda assemelham-se às dos profetas do Antigo Testamento: exprimindo-se com as categorias culturais e religiosas da sua época, interpretava à luz de Deus as Sagradas Escrituras, aplicando-as às várias circunstâncias da vida. Deste modo, todos os que a escutavam, sentiam-se exortados a praticar um estilo de existência cristão coerente e empenhado. Numa carta a São Bernardo, a mística renana confessa: «A visão arrebata todo o meu ser: não vejo com os olhos do corpo, mas aparece-me no espírito dos mistérios... Conheço o significado profundo do que está exposto no Saltério, nos Evangelhos e nos outros livros, que me são mostrados na visão. Ela arde como uma chama no meu peito e na minha alma, e ensina-me a compreender profundamente o texto» (Epistolarium pars prima I-XC: CCCM 91).

As visões místicas de Hildegarda são ricas de conteúdos teológicos. Referem-se aos eventos principais da história da salvação e utilizam uma linguagem sobretudo poética e simbólica. Por exemplo, na sua obra mais conhecida, denominada Scivias, isto é «Conhece as vias», ela resume em trinta e cinco visões os acontecimentos da história da salvação, desde a criação do mundo até ao fim dos tempos. Com os traços característicos da sensibilidade feminina, Hildegarda, exactamente na secção central da sua obra, desenvolve o tema do matrimónio místico entre Deus e a humanidade, realizado na Encarnação. No madeiro da Cruz realizam-se as núpcias do Filho de Deus com a Igreja, sua esposa, cheia de graça e tornada capaz de doar a Deus novos filhos, no amor do Espírito Santo (cf. Visio tertia: PL 197, 453c).

Já destes breves trechos vemos que também a teologia pode receber uma contribuição peculiar das mulheres, porque são capazes de falar de Deus e dos mistérios da fé com a sua singular inteligência e sensibilidade. Portanto, encorajo todas aquelas que desempenham este serviço a realizá-lo com profundo espírito eclesial, alimentando a própria reflexão com a oração e olhando para a grande riqueza, ainda em parte inexplorada, da tradição mística medieval, sobretudo a representada por modelos luminosos, justamente como Hildegarda de Bingen.

A mística renana é também autora de outros escritos, dois dos quais particularmente importantes porque descrevem, como o Scivias, as suas visões místicas: são o Liber vitae meritorum (Livro dos méritos da vida) e o Liber divinorum operum (Livro das obras divinas), denominado também De operatione Dei. No primeiro é descrita uma única e poderosa visão do Deus que vivifica o cosmos com a sua força e luz. Hildegarda realça a profunda relação entre o homem e Deus e recorda-nos que toda a criação, da qual o homem é o ápice, recebe a vida da Trindade. O escrito está centrado na relação entre virtudes e vícios, pela qual o ser humano deve enfrentar quotidianamente o desafio dos vícios, que o afastam do caminho rumo a Deus, e as virtudes, que o favorecem. O convite é para se afastar do mal para glorificar Deus e, depois de uma existência virtuosa, entrar na vida «toda de alegria». Na segunda considerada por muitos a sua obra-prima, descreve ainda a criação na sua relação com Deus e a centralidade do homem, manifestando um forte cristocentrismo de sabor bíblico-patrístico. A Santa, que apresenta cinco visões inspiradas pelo Prólogo do Evangelho de São João, apresenta as palavras que o Filho dirige ao Pai: «Toda a obra que Tu quiseste e me confiaste, cumpri-a com êxito, e eis que eu estou em ti, e Tu em mim, e Nós somos um só» (Pars III, Visio X: PL 197, 1025a).

Enfim, noutros escritos Hildegarda manifesta a versatilidade de interesses e a vivacidade cultural dos mosteiros femininos da Idade Média, contrariamente aos preconceitos que ainda pesam sobre aquela época. Hildegarda ocupou-se de medicina e de ciências naturais, inclusive de música, sendo dotada de talento artístico. Compôs hinos, antífonas e cânticos, que foram reunidos sob o título Symphonia Harmoniae Caelestium Revelationum (Sinfonia da harmonia das revelações celestiais), que eram executados jubilosamente nos seus mosteiros, difundindo uma atmosfera de serenidade, e que chegaram até nós. Para ela, toda a criação é uma sinfonia do Espírito Santo, que é alegria e júbilo em si mesmo.

A popularidade que circundava Hildegarda impulsionava muitas pessoas a interpelá-la. Por este motivo, dispomos de muitas suas cartas. A ela dirigiam-se comunidades monásticas masculinas e femininas, bispos e abades. Muitas respostas permanecem válidas inclusive para nós. Por exemplo, a uma comunidade religiosa feminina Hildegarda escrevia: «A vida espiritual deve ser cuidada com muita dedicação. No início o trabalho é difícil. Pois exige a renúncia à fantasia, ao prazer da carne e a outras coisas semelhantes. Mas se se deixar fascinar pela santidade, uma alma santa sentirá dócil e amoroso o próprio desprezo do mundo. Só é preciso prestar atenção, inteligentemente, para que a alma não se avilte» (E. Gronau, Hildegard. Vita di una donna profetica alle origini dell’età moderna, Milão 1996, p. 402). E quando o imperador Frederico Barba Roxa provocou um cisma eclesial opondo três antipapas contra o Papa legítimo Alexandre III, Hildegarda, inspirada pelas suas visões, não hesitou em recordar-lhe que também ele, o imperador, estava sujeito ao juízo de Deus. Com a audácia que caracteriza todos os profetas, ela escreveu ao imperador estas palavras da parte de Deus: «Ai desta conduta malvada dos ímpios que me desprezam! Escuta, ó rei, se quiseres viver! Se não, a minha espada trespassar-te-á!» (Ibid., p. 412).

Com a autoridade espiritual da qual era dotada, nos últimos anos da sua vida Hildegarda pôs-se em viagem, não obstante a idade avançada e as condições difíceis dos deslocamentos, para falar de Deus às populações. Todos a escutavam de bom grado, inclusive quando recorria a um tom severo: consideravam-na uma mensageira enviada por Deus. Exortava sobretudo as comunidades monásticas e o clero a uma vida em conformidade com a própria vocação. De modo particular, Hildegarda contrastou o movimento dos cátaros alemães. Eles — cátaros, à letra, significa «puros» — propugnavam uma reforma radical da Igreja, sobretudo para combater os abusos do clero. Ela repreendeu-os severamente por desejarem subverter a própria natureza da Igreja, recordando-lhes que uma verdadeira renovação da comunidade eclesial não se obtém tanto com a mudança das estruturas, quanto com um sincero espírito de penitência e um caminho concreto de conversão. Esta é uma mensagem que nunca devemos esquecer. Invoquemos sempre o Espírito Santo, a fim de que suscite na Igreja mulheres santas e corajosas, como Santa Hildegarda de Bingen que, valorizando os dons recebidos de Deus, dêem o seu contributo precioso e peculiar para o crescimento espiritual das nossas comunidades e da Igreja no nosso tempo.

Audiência de 08 de setembro de 2010.

Fonte: www.vatican.va

Sábado, 02 Outubro 2010 18:30

Munus Regendi - Catequese do Papa Bento XVI

Escrito por

Munus regendi

Amados irmãos e irmãs!

O Ano sacerdotal está para terminar; por isso comecei nas últimas catequeses a falar sobre as tarefas essenciais do sacerdote, ou seja: ensinar, santificar e governar. Já falei disto em duas catequeses, numa sobre o ministério da santificação, sobretudo os Sacramentos, e noutra sobre o do ensino. Portanto, hoje vou falar sobre a missão do sacerdote de governar, de guiar, com a autoridade de Cristo, não com a própria, a porção do Povo que Deus lhe confiou.

Como compreender na cultura contemporânea tal dimensão, que implica o conceito de autoridade e tem origem no próprio mandato do Senhor de apascentar o rebanho? O que é realmente, para nós cristãos, a autoridade? As experiências culturais, políticas e históricas do passado recente, sobretudo as ditaduras na Europa do Leste e do Oeste no século XX, tornaram o homem contemporâneo suspeitoso em relação a este conceito. Uma suspeita que, com frequência, se traduz em defender como necessário o abandono de qualquer autoridade, que não provenha exclusivamente dos homens, lhes seja submetida e por eles controlada. Mas precisamente o olhar sobre os regimes que, no século passado, semearam terror e morte, recorda com vigor que a autoridade, em qualquer âmbito, quando é exercida sem uma referência ao Transcendente, se prescindir da Autoridade suprema, que é Deus, acaba inevitavelmente por se voltar contra o homem. É importante então reconhecer que a autoridade humana nunca é um fim, mas sempre e só um meio e que, necessariamente e em cada época, o fim é sempre a pessoa, criada por Deus com a própria intangível dignidade e chamada a realizar-se com o próprio Criador, no caminho terreno da existência e na vida eterna; é uma autoridade exercida na responsabilidade diante de Deus, do Criador. Uma autoridade tão intensa, que tenha como única finalidade servir o verdadeiro bem das pessoas e ser transparência do único Bem Supremo que é Deus, não só é alheia aos homens, mas, ao contrário, é uma preciosa ajuda no caminho para a plena realização em Cristo, rumo à salvação.

A Igreja está chamada e compromete-se a exercer este tipo de autoridade que é serviço, e exerce-a não em seu nome, mas no de Jesus Cristo, que do Pai recebeu todo o poder no Céu e na terra (cf. Mt 28, 18). De facto, através dos Pastores da Igreja Cristo apascenta a sua grei: é Ele quem a guia, protege e corrige, porque a ama profundamente. Mas o Senhor Jesus, Pastor supremo das nossas almas, quis que o Colégio Apostólico, hoje os Bispos, em comunhão com o Sucessor de Pedro, e os sacerdotes, seus mais preciosos colaboradores, participassem nesta sua missão de se ocupar do Povo de Deus, de ser educadores na fé, orientando, animando e apoiando a comunidade cristã ou, como diz o Concílio, cuidassem "para que cada fiel seja levado, no Espírito Santo, a cultivar a própria vocação segundo o Evangelho, a uma caridade sincera e activa e à liberdade com que Cristo nos libertou" (Presbyterorum ordinis, 6). Portanto, cada Pastor é o meio através do qual o próprio Cristo ama os homens: é mediante o nosso ministério – queridos sacerdotes – é através de nós que o Senhor alcança as almas, as instrui, guarda e guia. Santo Agostinho, no seu Comentário ao Evangelho de São João, diz: "Seja portanto empenho de amor apascentar o rebanho do Senhor" (123, 5); esta é a norma suprema dos ministros de Deus, um amor incondicionado, como o do Bom Pastor, cheio de alegria, aberto a todos, atento ao próximo e solícito em relação aos distantes (cf. S. Agostinho, Discurso 340, 1; Discurso 46, 15), delicado para com os mais débeis, os pequeninos, os simples, os pecadores, para manifestar a misericórdia infinita de Deus com as palavras alentadoras da esperança (cf. Id., Carta 95, 1).

Se esta tarefa pastoral se funda no Sacramento, contudo a sua eficácia não é independente da existência pessoal do presbítero. Para ser Pastor segundo o coração de Deus (cf. Jr 3, 15) é preciso um radicamento profundo na amizade viva com Cristo, não só da inteligência, mas também da liberdade e da vontade, uma consciência clara da identidade recebida na Ordenação sacerdotal, uma disponibilidade incondicionada a conduzir o rebanho confiado aonde o Senhor quer e não na direcção que, aparentemente, parece mais conveniente ou mais fácil. Antes de tudo, isto exige a contínua e progressiva disponibilidade para deixar que o próprio Cristo governe a existência sacerdotal dos presbíteros. De facto, ninguém é realmente capaz de apascentar a grei de Cristo, se não viver uma obediência profunda e real a Cristo e à Igreja, e a própria docilidade do Povo aos seus sacerdotes depende da docilidade dos presbíteros a Cristo; por isso, na base do ministério pastoral está sempre o encontro pessoal e constante com o Senhor, o conhecimento profundo d'Ele, o conformar a própria vontade com a vontade de Cristo.

Nos últimos decénios, utilizou-se muitas vezes o adjectivo "pastoral" quase em oposição ao conceito de "hierárquico", assim como, na mesma contraposição, foi interpretada também a ideia de "comunhão". Talvez seja este o ponto sobre o qual pode ser útil uma breve observação sobre a palavra "hierarquia", que é a designação tradicional da estrutura de autoridade sacramental na Igreja, ordenada segundo os três níveis do Sacramento da Ordem: episcopado, presbiterado, diaconado. Prevalece na opinião pública, para esta realidade "hierárquica", os elementos de subordinação e jurídico; por isso para muitos a ideia de hierarquia parece estar em contraste com a flexibilidade e com a vitalidade do sentido pastoral e também ser contrária à humildade do Evangelho. Mas este é um sentido da hierarquia compreendido mal, historicamente também causado por abusos de autoridade e por carreirismo, que são precisamente abusos e não derivam do ser próprio da realidade "hierárquica". A opinião comum é que "hierarquia" é sempre algo relacionado com o domínio e assim não correspondente ao verdadeiro sentido da Igreja, da unidade no amor de Cristo. Mas, como eu disse, esta é uma interpretação errada, que tem origem em abusos da história, mas não corresponde ao verdadeiro significado daquilo que é a hierarquia. Comecemos com a palavra. Geralmente, diz-se que o significado da palavra hierarquia seria "domínio sagrado", mas o verdadeiro significado não é este, é "origem sagrada", ou seja: esta autoridade não provém do próprio homem, mas tem origem no sagrado, no Sacramento; submete portanto a pessoa à vocação, ao mistério de Cristo; faz do indivíduo um servo de Cristo e só como servo de Cristo ele pode governar, guiar para Cristo e com Cristo. Por isso quem entra na Ordem sagrada do Sacramento, a "hierarquia", não é um autocrata, mas entra num vínculo novo de obediência a Cristo: está ligado a Ele em comunhão com os outros membros da Ordem sagrada, do Sacerdócio. E também o Papa ponto de referência de todos os outros Pastores e da comunhão da Igreja não pode fazer o que quiser; ao contrário, o Papa é guardião da obediência a Cristo, à sua palavra resumida na "regula fidei", no Credo da Igreja, e deve preceder na obediência a Cristo e à sua Igreja. Hierarquia implica por conseguinte um tríplice vínculo: antes de tudo com Cristo e com a ordem dada pelo Senhor à sua Igreja; depois o vínculo com os outros Pastores na única comunhão da Igreja; e, por fim, o vínculo com os fiéis confiados a cada um, na ordem da Igreja.

Compreende-se portanto que comunhão e hierarquia não são contrárias uma à outra, mas condicionam-se. São juntas uma só coisa (comunhão hierárquica). Portanto, o Pastor é tal precisamente guiando e guardando a grei, e por vezes impedindo que ela se disperse. Fora de uma visão clara e explicitamente sobrenatural, não é compreensível a tarefa de governar, própria dos sacerdotes. Ela, ao contrário, apoiada pelo verdadeiro amor à salvação de cada fiel, é particularmente preciosa e necessária também no nosso tempo. Se a finalidade é levar o anúncio de Cristo e guiar os homens ao encontro salvífico com Ele para que tenham vida, a tarefa de guiar configura-se como um serviço vivido numa doação total para a edificação do rebanho na verdade e na santidade, muitas vezes indo contracorrente e recordando que quem é o maior deve fazer-se como o mais pequeno, e quem governa, como aquele que serve (cf. Lumen gentium, 27).

De onde pode tirar hoje um sacerdote a força para a prática do próprio ministério, em plena fidelidade a Cristo e à Igreja, com uma dedicação total à grei? A resposta é uma só: em Cristo Senhor. O modo de governar de Jesus não é o do domínio, mas é o serviço humilde e amoroso do Lava-pés, e a realeza de Cristo sobre o universo não é um triunfo terreno, mas encontra o seu ápice no madeiro da Cruz, que se torna juízo para o mundo e ponto de referência para a prática da autoridade, que seja verdadeira expressão da caridade pastoral. Os santos, e entre eles São João Maria Vianney, exerceram com amor e dedicação a tarefa de cuidar da porção do Povo de Deus que lhes foi confiada, mostrando também que eram homens fortes e determinados, com o único objectivo de promover o verdadeiro bem das almas, capazes de pagar em primeira pessoa, até ao martírio, para permanecer fiéis à verdade e à justiça do Evangelho.

Queridos sacerdotes, "apascentai o rebanho que Deus vos confiou, velando por ele, não constrangidos, mas de boa vontade [...], como modelos do vosso rebanho" (1 Pd 5, 2). Portanto, não tenhais medo de guiar para Cristo cada um dos irmãos que Ele vos confiou, na certeza de que cada palavra e atitude, se vierem da obediência à vontade de Deus, darão fruto; sabei viver apreciando as qualidades e reconhecendo os limites da cultura na qual estamos inseridos, com a firme certeza de que o anúncio do Evangelho é o maior serviço que se pode prestar ao homem. De facto, não há bem maior, nesta vida terrena, do que conduzir os homens para Deus, despertar a fé, elevar o homem da inércia e do desespero, dar a esperança que Deus está próximo e guia a história pessoal e do mundo: é este, em suma, o sentido profundo e último da tarefa de governar que o Senhor nos confiou. Trata-se de formar Cristo nos crentes, através daquele processo de santificação que é conversão dos critérios, da escala de valores, de atitudes, para deixar que Cristo viva em cada fiel. São Paulo resume assim a sua acção pastoral: "Filhinhos meus, por quem de novo sinto as dores de parto, até que Cristo seja formado em vós" (Gl 4, 19).

Queridos irmãos e irmãs, gostaria de vos convidar a rezar comigo, Sucessor de Pedro, que tenho uma tarefa específica no governar a Igreja de Cristo, assim como por todos os vosos Bispos e sacerdotes. Rezai por que saibamos ocupar-nos de todas as ovelhas, também das perdidas, da grei que nos foi confiada. A vós, queridos sacerdotes, dirijo um cordial convite para as Celebrações conclusivas do Ano sacerdotal, nos próximos dias 9, 10 e 11 de Junho, aqui em Roma: meditaremos sobre a conversão e missão, sobre o dom do Espírito Santo e sobre a relação com Maria Santíssima, e renovaremos as nossas promessas sacerdotais, apoiados por todo o Povo de Deus. Obrigado!

Audiência de 26 de maio de 2010.

Fonte: www.vatican.va

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